quarta-feira, 19 de março de 2008

Tem sempre algum anjo, químico ou não, que se aproxima de mim nos momentos de tristeza profunda. Que decadência! Agente aposta numa profecia mesmo não acreditando, e não é que a pôrra funciona mesmo, às vezes!
Eu tava numa travessa da rua Ângela Bassan quando vi aquele anjo disfarçado em uns trapos de camponesa do século catorze. Olhei pra ela vibrando os olhos de pena. Se não era pena era algum sentimento que se reagia mais forte no corpo. Atrás de todo aquele mantuário desprovido de cor, revestido de uma sujeira milenar; uma pele branca e sadia encoberta de pó e falta de vida tentava aparecer. Eu carregava nos braços um saco de pão e uma sacola com leite e mortadela, pensei em atravessar e dividir o meu café, mas tinha que ajudar de uma forma mais gloriosa, a menos imaginada possível, se não seria o mesmo que acordar todo dia pra nada. A multidão de carros e gente nos roubava o foco por milésimos de tempo, mas logo estávamos ali, fixados um na imagem do outro. Ela com seus movimentos cada vez menos perceptíveis e eu me interrogando de vou-ou-não-vou. Observei tudo que tava ao seu redor: a cabine telefônica cheia das propagandas das putas, quer dizer, das finas duquesas noturnas; algumas portas de loja se fechando, um ponto de táxi a trinta metros dela, e uns dois cães cheirando o chão na porta da loja abandonada em que ela se encontrava. O farol tava no amarelo quando eu tomei a primeira atitude sob aquele meu crônico altruísmo. Fui em sua direção, certo e objetivo em sua direção. Chegando de frente praquele anjo de trajes fora de época, no mesmo momento em que um caminhão carregando remédios buzina um grito atrás de mim, disse, Vamos tomar um café? Ela não se moveu verbalmente, virou as pernas para a direção do bar e eu segui. Minutos depois estávamos sentados, depois de eu gastar algumas palavras com o garçom e o gerente do recinto, que temiam a presença da moça no ambiente, dizendo que ia afastar a clientela. Eu disse numa baforada, Vocês sabem pra quê vocês estão aqui, agora, nesse lugar? Eles se olharam com uma cara de pato de dar trono pra quasimodo. Continuei, Vocês estão aqui pra nos servir! Então, por favor, traga-nos uma dose de conhaque e o cardápio que a dama está com fome. Fiz questão de usar da fineza de um aristocrata metido, mas só pra deixar o cara com as pernas quebradas lamuriei aquele glamour de merda. E ele gosou do rabo entre as pernas. Saiu que nem peixe da mão. Comemos e trocamos umas idéias a noite toda. Parecíamos dois diabos brincando no tempo de suas histórias. Numas risadas estranhas agente se conhecia rapidamente e eu mal notava que eu não passava de um vagabundo viciado em delírios, viciado na caça ao coelho, trocando valores com uma moradora de rua. E de muita cultura! Duvidei em vários momentos que ela poderia ser a reencarnação da própria Simone, a de Bôvárrí. Peguei minhas tralhas e cai pro subúrbio das esquinas, imaginando que aquilo também poderia ser uma alucinação, um atrativo delírio da minha cabeça. Mas não era engano, nem descaso de minha consciência, a realidade era tão intensa quanto a picada de uma agulha no braço. Me senti revigorado e sem cobrar nada por isso. Fui pelo instinto e saciei a imagem de um anjo por algum tempo da noite.
Antes de dormir joguei uns êmeéles pro santo e dei um gole duplo num wiskie velho que eu tinha em casa. Depois apaguei com a cara do bucóvisqui durante o dia, um trapo!

3 comentários:

OpostoposTo disse...

Olha...
Na falta de coisa melhor pra dizer...PQP....
Cacete.

Terminam aqui meus trejeitos verbo-mentais.
Emudecina pela qualidade clandestina do conto!

Cada vez mais você mesmo.
Cada vez mais pelos cantos escuros e esguios da mente submersa.

Delírio

OpostoposTo disse...

"Vejo os pombos no asfalto / eles sabem voar alto / mas insistem em catar as migalhas do chão."

Completando com ZecaBaleiro.............

A dama Lasciva disse...

Mas o que sentiria, a nobre dama-deusa-branca, se soubesse do teu sentimento forte( ou pena talvez),
Poderia esta dama se reprimir de delirar na noite, também.rsrs
Muito bem escrito!

As damas estão aí pelas noites a devorar desejos,todos eles,deslizam.
Com uma visão de águia,de um franco-atirador.rsrs
Elas podem rasgas o teu corpo e que assim seja!